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Peregrino percorre a Transcarioca e encontra ruínas de construções ciganas e paisagens exuberantes

Em 15 dias, montanhista completou 177 quilômetros de caminhada.

Montanhista e analista de sistemas, Horácio Ragucci passou 15 dias fazendo o percurso
Foto: Agência O Globo
Montanhista e analista de sistemas, Horácio Ragucci passou 15 dias fazendo o percurso – Agência O Globo

Pouca gente pode se orgulhar de conhecer tão bem o Rio quanto o analista de sistemas e montanhista Horácio Ragucci. Este mês, ele completou, após 15 dias de caminhada, os 177 quilômetros — com 12.431 metros de subidas — da Transcarioca, o corredor que forma a maior trilha do mundo dentro de uma cidade. Horácio faz parte de um grupo seleto, com um novo conceito de vida: a peregrinação urbana.

Pelos passos desses peregrinos da modernidade, emergem caminhos de 300 anos e novos ângulos de velhos cartões-postais. Ao longo da jornada, a Transcarioca revela antigos refúgios de corsários franceses e lembranças de personagens que haviam se perdido no tempo, como Maria Devel. Fazendeira no século XIX, ela morava sozinha dentro da Floresta da Tijuca.

LONGE E, AO MESMO TEMPO, PERTO

A Transcarioca nasceu oficialmente em fevereiro, mas, na verdade, conecta trilhas antigas, algumas abertas nos primeiros anos do Brasil-Colônia. Foram estabelecidos 25 trechos que podem ser feitos aos poucos, mas percorrê-los em sequência proporciona a experiência única de viajar no tempo e de se isolar da frenética rotina da metrópole a uma curta distância do asfalto.

A Pedra do Osso, que fica no Parque da Pedra Branca, cortado pela trilah: bloco de rocha é um dos atrativos da Transcarioca – Horácio Ragucci / Arquivo pessoal

— Quando pensamos em peregrinações, o que vêm à nossa mente são lugares distantes, como as grandes trilhas da Europa. Mas o Rio também tem uma de longo percurso. A Transcarioca não chega perto dos cerca de 800 quilômetros dos Caminhos de Santiago, mas é enorme para uma trilha urbana e guarda muitos encantos — garante Ragucci, que tem 67 anos.

Coordenador-geral da Transcarioca, ele já conhecia bem cada um dos trechos, mas decidiu fazer todo o percurso em uma única jornada porque sabia que a experiência seria diferente:

— Senti uma sensação de isolamento bastante curiosa, pois, de certa forma, estava sempre próximo de locais movimentados do Rio. Andei, em média, seis horas por dia, ou 12 quilômetros. Mas houve um dia em que caminhei por 12 horas; e, num outro, só me locomovi por 40 minutos.

A peregrinação urbana se inicia nas praias de Guaratiba e termina no Pão de Açúcar — pode ser feita também no sentido inverso, questão de gosto. A aventura maior da primeira parte da jornada não está nas praias, mas na redescoberta de caminhos usados na invasão francesa de 1710.

‘São lugares com muita história. Há restos de antigos calçamentos. Ali, é fácil viajar no tempo’ – HORÁCIO RAGUCCI, peregrino

 

Naquele ano, o corsário Jean François Duclerc e seus mil homens atracaram em Guaratiba e marcharam para a região do Centro. Acabaram derrotados, mas deixaram traços de sua passagem em locais como o Alto da Capelinha, as tocas Grande e Pequena e os morros da Ilha, da Bela Vista, do Morgado e, obviamente, do Francês.

— São lugares com muita história. Há restos de antigos calçamentos de pedras, ruínas. Ali, é fácil viajar no tempo — conta Ragucci.

A dificuldade maior está no sobe e desce pelos cumes do Maciço da Pedra Branca.

— A vista compensa, mas é um trecho que exige maior esforço físico, embora não seja necessário escalar, apenas andar — observa Ragucci.

O relevo dominado por montanhas faz com que peregrinar pelas bordas da cidade seja uma viagem vertical:

— Se somarmos todos os morros e montanhas do caminho, dá 12.431 metros. Sem considerarmos a questão da altitude, é como subir mais de um Everest, que tem 8.848 metros. Isso sem qualquer escalada.

A CIDADE VISTA DE CIMA

É nas alturas que estão os dois lugares que, na opinião de Ragucci, oferecem os panoramas mais bonitos — e pouco conhecidos — do Rio. Um deles é Alto da Mangalarga (767 metros), em Vargem Grande. O outro, a Pedra do Ponto (938 metros), em Realengo. No primeiro, pode-se avistar um mar de florestas que termina no Atlântico, nas praias da Zona Oeste.

— Já a Pedra do Ponto é o meu lugar favorito pela amplidão do panorama. É um pequeno promontório, confundido por muita gente com o Pico da Pedra Branca (o ponto de maior altitude do município do Rio, com 1.025 metros) — afirma o peregrino da Transcarioca.

Da Pedra do Ponto, vê-se a malha urbana da cidade mergulhar no mar. É possível avistar, em frente, os bairros da Zona Oeste; a leste, a Baía de Guanabara; e a oeste, o litoral de Guaratiba e Grumari.

Se os trechos do Maciço da Pedra Branca impressionam pelas paisagens pouco conhecidas, os da Tijuca têm o verde mais exuberante, na opinião de Ragucci. A floresta urbana guarda mistérios e histórias, uma delas sobre uma mulher corajosa, que cuidava de uma pequena fazenda no interior da chamada Mata do Andaraí. Hoje, sua casa, próxima ao curso da Transcarioca, está em ruínas.

— Pesquisamos bastante, mas não descobrimos muita coisa. Sabemos que a dona dessa pequena fazenda se chamava Maria Devel. Parece que esse sobrenome tem origem cigana. Isso faz sentido, porque a região tem locais conhecidos como Represa dos Ciganos e Alto dos Ciganos — revela Ragucci.

Maria Devel desapareceu, mas ela batiza uma garganta, uma passagem estreita e acidentada entre as montanhas, na área onde nasce o Rio dos Perdidos.

— A experiência é realmente a de caminhar pela história da cidade. Como não se fascinar pela lenda de uma mulher que foi morar sozinha no meio do nada? Na época, o lugar era mais isolado do que hoje. De cavalo, as pessoas levavam uma hora até o povoamento mais próximo, no Grajaú. Hoje, a pé, ainda mais — conta o montanhista.

Pelos caminhos da Floresta da Tijuca, há vários outros trechos que passam por ruínas ou que preservam calçamentos de antigas rotas. Ragucci optou por terminar sua jornada onde o Rio começou, aos pés do Pão de Açúcar, às margens da Baía de Guanabara.

— Andei muito. Sou um caminhante experiente, vi muitas coisas, mas sempre havia algo para descobrir na Transcarioca — diz Ragucci.

Via Peregrino percorre a Transcarioca e encontra ruínas de construções ciganas e paisagens exuberantes | O Globo

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